A produção artística e literária de António Victorino D’Almeida constitui, no seu todo, uma referência de primeira magnitude na vida cultural portuguesa das últimas décadas.
Pianista, compositor, escritor, realizador de cinema e de televisão, encenador, conferencista e comunicador, a sua acção é de tal maneira ampla e diversificada que a mera listagem das suas criações, título por título, excederia, pela sua extensão, as possibilidades e os objectivos deste trabalho.
De facto, este vasto cosmos criador está integrado por uma discografia de mais de 20 referências como compositor e 3 como pianista, um catálogo de compositor de mais de 130 opus (e 50 canções fora de catálogo), autoria de obras literárias, musicológicas e políticas, realização de célebres séries televisivas, documentários, longas metragens e programas radiofónicos, música original para teatro, cinema e televisão, vários títulos de dramaturgia operática e teatral e até participações como actor.
Isto tudo “polvilhado” com vários importantes prémios de diversas especialidades, e complementado por uma carreira de pianista e conferencista que inclui centenas de apresentações, um pouco por todo o mundo.
Não faltam neste panorama responsabilidades institucionais tais como a direcção artística de festivais de música, a acção docente universirária, a participação no júri de concursos musicais, vários anos de brilhante gestão como Adido Cultural da Embaixada de Portugal em Viena e a distinção com duas altas condecorações do Estado Austríaco.
Não foi publicado até hoje nenhum ensaio especificamente dedicado à catalogação, análise e contextualização da enorme produção intelectual de António Victorino D’Almeida, e algumas das suas composições ainda não foram estreadas. No entanto, a sua obra em constante expansão forma um caleidoscópio vivo e actuante de cultura portuguesa (no sentido mais multi-disciplinar da expressão), cujo estudo sistemático e rigoroso é, no meu entender, uma premente necessidade, para uma melhor divulgação (dentro e fora das fronteiras) das figuras que estabelecem, por gravitação própria, o perfil actual do pensamento português. Isto é prioritário, numa altura em que o país deve assumir com coragem as potencialidades da sua identidade cultural, sob risco de continuar a ser centrifugado rumo à periferia numa Europa em plena “ampliação de instalações” e perante uma globalização que, almejada como factor de disseminação irrestrita de ideias e conteúdos, está a funcionar, em alguns aspectos, como um inexorável mecanismo de descaracterização.
Liberdade de escolha perante modelos e influências e total ausência de auto-censura são os rasgos essenciais da música de António Victorino D’Almeida. Este itinerário colide irremediavelmente com todos e quaisquer preconceitos de etiquetagem musical ou divisão em géneros inconciliáveis.
Com feroz alegria, António Victorino D’Almeida quebra os compartimentos estanques, combinando assim variadíssimas vertentes estéticas: da modulação cromática póswagneriana até ao dodecafonismo, do atonalismo até ao neoclassicismo, aventurando-se por vezes – com bem-humorada frescura – nos territórios da música étnica, do cabaret Berlin, do café concert françês, da canção urbana de Lisboa ou de Viena e até, para escândalo de alguns, do piano cocktail americano. Já tive oportunidade de comentar publicamente este “amplo espectro” da sua música: «…A mise em musique de António Victorino D’Almeida é excelente. As melodias estão cuidadosamente elaboradas com a preocupação constante de proteger a intérprete, nunca ultrapassando o limite das suas possibilidades vocais.
As harmonizações e as instrumentações são de um espantoso colorido, e perfazem um brilhante exercício de «folclore imaginário». Sem nunca cair no postal ilustrado de cores berrantes, cada canção estabelece uma atmosfera folclórica específica, típica do país de origem de cada poeta.
No entanto, este mimetismo estilístico não pressupõe a perversão camaleónica do “Zelig” de Woody Allen por um motivo bem concreto: para além da sua carga “para-étnica” toda essa produção é fortemente presidida pelo cunho pessoal do compositor.
Este factor mantém-se, nítido e inconfundível, mesmo quando submetido a tão radicais metamorfoses…» (in A CAPITAL, 28 de Junho de 1996, acerca do CD NUMÉRICA 1048, Gaudeamus – A União Europeia canta os seus grandes poetas). «…Todas as influências são válidas na estética de António Victorino D’Almeida, porque enriquecem o seu mundo sem adulterar a sua personalidade.
Erik Satie, Igor Stravinsky, Kurt Weill, Serguei Prokofieff e Nino Rota sobrevoam por instantes esta música que homenageia todos eles sem ficar, no entanto, amarrada “ao carro triunfal de nenhum vencedor”…» (in A CAPITAL, 4 de Outubro de 1996, acerca do CD Portugalsom 870030 PS, Música de Câmara de António Victorino D’Almeida). «…Um velho, mas ainda vigente postulado, ensina-nos que, na criação artística, a maneira mais nobre de honrar as influências consiste em conseguir, através delas, uma identidade própria.
por Alejandro Erlich-Oliva