Toda a obra contém mundos secretos que a condição humana jamais conseguirá desvendar nas suas origens e percursos últimos, por mais que as ciências modernas e as tecnologias nos conduzam às proximidades. O homem, como máquina autónoma e como peça de máquinas diversas — social, política, cultural, antropológica, histórica, filosófica, ontológica, etc., — dificilmente se confinará a uma classificação restrita. Assim é uma obra de arte que nada exprime e tudo exprime; nela estão contidos os gérmenes ou os vírus da afirmação e da negação, da construção e da destruição, do bom e do mau, do verdadeiro e do falso, do belo e do feio, do inteligível e do ininteligível. Com ou sem palavras, entendíveis ou não, pelo comum dos homens, uma obra de arte é sempre um mundo de relações abstractas que a tornam um objecto reconhecível ou irreconhecível, pelas suas virtualidades próprias, pelas suas relações pré-existentes ou alheias ao mundo que a recebe; num caso, beneficiando dos padrões e modelos de recepção adquiridos, noutro caso, ignorando padrões e modelos mais desconhecidos. A sensibilidade e a emoção, o conhecimento inato ou a abertura de espírito associados à condição cultural, social, académica e económica do meio, determinarão as condições de acesso à compreensão de uma nova obra e a sua modernidade. Quaisquer que sejam as intenções do artista ao conceber, arquitectar e realizar uma obra, será sempre com algum grau de irracionalidade que uma nova obra é recebida, percebida e apreciada. Os afectos, as emoções e as razões cruzam-se em itinerários e labirintos entre a psicologia do criador e as psicologias dos receptores. A condição humana pode explicar, enfim, até um limite de racionalidade, os porquês dessa forma específica de reagir à criação de um indivíduo por outro indivíduo.
O título...do Mar da póvoa-MANTA, é uma combinação de sentidos, que, hábito no compositor, se forma à medida que as ideias de várias origens vão irrigando o curso da música, dos esboços, das pequenas e sinuosas formas até outros tipos de configurações. Das condicionantes orquestrais (de uma orquestra de jovens à própria escolha de instrumentos de percussão, por exemplo), às fronteiras assumidas de ideias que remetem para as simbologias de um lugar, de uma cultura, de uma história de povos (de gentes de uma póvoa), nasceu, cresceu e se formou uma música visível, concreta, palpável que se tornou numa espécie de paisagem abstracta, num quadro sensível de vivências humanas entre a terra e o Mar. Uma arquitectura fechada e aberta, uma música de ar livre e de catedrais, de cenários e de itinerários conduzidos por ressonâncias, projecções de ressonâncias simbólicas. Fugazes lengalengas no nevoeiro de corais e de atmosferas orquestrais, evocando sons lúgubres de maus presságios, de rezas e de cantilenas de teceres de redes, coros imaginários das comunidades, do sagrado e do profano, memórias de diálogos, combates e exaltações. A água, como arquétipo de protecção e de vida, de tumulto e de tranquilidade, de morte e de ressurreição, materializa uma mensagem por sons que se constituem, como paisagens, em polifonias breves, harmonias densamente povoadas, sonoridades simbólicas, arquitecturas e fugidias esculturas. A modelização do som como entidade autónoma, isolado de qualquer sistema, sobressai como princípio condutor e estruturador com origem num mundo harmónico gerado por estruturas de intervalos dotados de sonoridade-cor que marca toda a fisionomia da obra. O melodismo oculto e aberto de salmodiares de povos perpassam estas páginas breves, constituídas por “nós e laços”, por fios de linho e água (“malhas que o império tece”!), em sons que tocam as próprias origens marítimas do compositor, impregnado desde o berço das águas dos mares do Norte (e dos Mares da Guiné!). Num mundo de abstracção que é a música, há espaço para a expressão das emoções tangíveis da vida e das coisas, qualquer que seja o sentido que cada ser vivo (não só o homem!) lhe dá. Assim é para este poema breve, destinado ao mar e às vozes de uma “póvoa” que, sob várias formas, atravessa a vida do próprio compositor desde os tempos de infância aos dias de hoje, seus e de antepassados.
Cândido Lima
Porto, 23 de Maio de 2004