A música de Joly Braga Santos (1924-1988) foi desde cedo divulgada além-fronteiras, mormente a sua produção sinfónica. O conjunto de gravações realizado desde meados da década de 90 pelo maestro Álvaro Cassuto e editado em etiquetas internacionais veio enfim dar uma visibilidade internacional estável à sua música, para o que também foi importante a edição em partitura (entretanto realizada) da maior parte dessas obras.
Mas a sua produção no domínio da música de câmara (18 obras, no total) não é menos importante para perceber e acompanhar a personalidade e o percurso deste autor *1. Esse caminho, enceta-o agora a presente série integral do Quarteto Lopes-Graça, de que este é o volume I.
José Manuel Joly Braga Santos (Lisboa, 14/5/1924 – id., 18/7/1988) é uma das figuras cimeiras da música portuguesa do século XX, ombreando com nomes como Luís de Freitas Branco (1890-1955), Fernando Lopes-Graça (1906-94) ou Jorge Peixinho (1940-95). Compositor prolífico, teve também actividade relevante como maestro e como crítico musical. Natureza musical precoce, foi aluno particular de Luís de Freitas Branco, cuja forte personalidade haveria de marcar a sua primeira fase criativa, que se prolonga até ao período que passa em Itália (entre 1957 e 1961).
As primeiras obras que assume enquanto autor são dos seus 17-18 anos, mas deveras impressionante é o despertar da sua natureza de sinfonista (‘medium’ mais conforme à sua peculiar personalidade expansiva), que se traduzirá na composição de 4 sinfonias entre os 22 e os 26 anos! *2. A sua produção orquestral beneficiou ainda do encorajamento e contribuição importantes de Pedro de Freitas Branco, director musical da então Orquestra Sinfónica Nacional *3.
Quando, em 1945, aos 21 anos, Joly Braga Santos decide abordar o quarteto de cordas, não são muitos os precedentes que tem em Portugal: à época, não seriam sequer conhecidos os dois quartetos de Vianna da Motta (1868-1948); Luís de Freitas Branco compusera apenas um (o seu único) em 1911 – aos 20 anos!; Lopes-Graça só em 1964 se dedicaria ao género; e outro compositor relevante da época, Frederico de Freitas (1902-80), escrevera um em 1926 e comporia outro em 1946. Estamos, pois, a falar de um país e de um meio sem tradição no que respeita a este género musical.
Os Quartetos de Joly, datados, respectivamente, de 1945 e de 1957, pertencem à sua 1.ª fase criativa, na qual predomina uma linguagem melódica, harmónica e contrapontística de feição modal, genericamente enquadrável na estética neoclássica europeia.
O Quarteto n.º 2, em lá m, op. 29 provém do início do período-charneira na carreira de Joly, isto é, os quatro anos (com interregnos) que passou em Itália *6. Na opinião do musicólogo João de Freitas Branco, estamos perante “a obra de maior fôlego da 1.ª fase criativa do compositor”. Foi escrito em Milão, nos meses finais de 1957, e dedicado à sua mulher *7. Se o ‘Quarteto n.º 1’ antecedera em pouco a sua 1.ª Sinfonia, a escrita deste coincide com a de outra importante criação: a ópera ‘Mérope’ *8.
Face ao seu “irmão mais velho”, este 2.º Quarteto é uma obra claramente mais depurada, mais concisa (668 compassos, face aos 1199 do Quarteto n.º 1) e menos subjectiva. Ela emprega o procedimento cíclico (o tema do ‘Largo’ inicial, que regressa nos restantes andamentos) e em termos de linguagem há uma amplificação dos recursos face ao 1.º Quarteto, pois aqui o modalismo já é conjugado com princípios pentatónicos, com o cromatismo, com oposições tritonais e com a harmonia baseada no ciclo das 5as. (quer nas relações verticais, quer nas horizontais).
A estreia do Quarteto n.º 2 sobreveio apenas a 16 de Dezembro de 1986, no Salão Nobre do Teatro Nacional de São Carlos, pelo Quarteto Capela *9.
O 1.º andamento tem um ‘Largo’ inicial, escrito como um grande arco de polifonia instrumental *10 e terminando num solo de viola. Esse tema irá recorrer ao longo da
obra. Encadeia com um ‘Allegro moderato’ estruturado em forma-sonata sem Desenvolvimento, com dois temas: o 1.º, nos violinos, na textura de melodia acompanhada, em dois segmentos, com uma passagem em ‘pizzicato’ a separá-lo do 2.º tema, de carácter rítmico (violeta e violoncelo, depois violinos). Uma transição liderada pelo violino1 tem alguma afinidade com a melodia do ‘Largo’ e encadeia com a Reexposição, em que o tema 2 aparece abreviado. Uma breve e concisa Coda conclui.
O 2.º andamento é um políptico em cinco secções: o ‘Adagio molto’ inicial põe o violoncelo em destaque, seguindo-se um ‘Andante con moto’ de carácter rústico, com os violinos a conduzir. Novo ‘Adagio’ traz uma nova textura: sobre um ondulado de fusas, violino1 e violoncelo (sempre no registo mais agudo) elevam um canto rico em cromatismos, depois ‘temperados’ com inflexões mais modais. Na secção seguinte, sobre ‘pizzicati’ do violoncelo, os restantes instrumentos “desenovelam” um tema claramente derivado do tema do ‘Largo’ do 1.º and.. Regresso do rústico a concluir, ainda mais acentuado no carácter e nos ‘ostinati’, executando um arco dinâmico que termina ‘ppp’, com o violino1 em harmónicos.
O tema-condutor regressa na Introdução (‘Largo’) do 3.º andamento, agora conduzido pelo violino1, o qual, sobre ondulado de violino2/viola e ‘pizz’ do violoncelo, lhe há-de dar feição mais lírica. O endiabrado tema do ‘Allegro molto vivace’ que encadeia não podia chocar mais: eis aqui o mundo das danças campesinas bartokianas! Com ele irá por sua vez contrastar um tema mais calmo (‘Meno’), de melodismo e rítmica mais portuguesa (no violino1, depois violeta e violoncelo), não sem aspectos de dança. Este par contrastante regressa, mas com a 2.ª secção (‘Più tranquillo’) ainda mais lisa e lírica, com o ritmo de dança portuguesa a surgir apenas em fundo. O regresso do ‘Allegro’ bartokiano faz-se em gradação aumentativa de intensidade, culminando na Coda (‘Presto’) e precipitando-se no final.
Bernardo Mariano
Revisão Quarteto Lopes-Graça