António Victorino D’Almeida tal como “Ao princípio…”
Quando a infância é uma caixa de bombons, um sótão que não acaba nunca e donde se extraem surpreendentes sabores ou odores é frequente que a alma tenha tantas derivas como infinitos foram os sonhos dos primeiros tempos. E é frequente que quem assim se alimenta não deixe de surpreender quem lhe quer entender os passos. Por isso me é tão difícil escrever este texto para que o António me atirou.
Ele é o mais surpreendente compositor português não só de hoje, mas de sempre. O criador musical que nenhum estilo amarrou. E estou a pensar no meu deslumbramento ao ouvir “Memórias do meu sótão”, as suites “Capitães de Abril”, o De profundis, a suite “Dinis e Isabel”, mas também no que o vi criar para trabalhos que fizemos em comum: “Santa Joana dos Matadouros”, “A Relíquia”, ”D. Maria a Louca”, “Xeque-Mate” (a que para sempre ficámos a dever o especialíssimo “Tema de Ágata” rabiscado no espaço livre de um jornal “A Bola”), etc., etc..
Depois é o romancista da trilogia satírica ou tragicómica? “Coca-cola Killer”, “Tubarão 2000”, “Portugal definitivo”, percurso de uma personagem extraordinária entre Gogol e Jarry de que ao fim só o autor se compadece.
Depois é o realizador de “A Culpa”, o filme cómico onde se transpõe a memória da guerra colonial para um remorso mal vivido e de ir às lágrimas onde a autópsia do um tempo vai do grotesco ao escatológico e é tributária de Eça a Bocage. E também do surrealismo. Foi o filme mais visto na minha casa quando os meus filhos eram adolescentes.
E de repente em 2010 António dá-nos o presente da sua autobiografia. ”Ao princípio era eu”. Biografia extraordinária que faz acabar no fim da inocência, que me perdoe o autor a simplificação. E nós sentimos nesse mesmo mergulho nos primeiros anos da infância à juventude, como eles ainda estão vivos e presentes no Victorino D’Almeida de hoje tantas décadas depois. Presentes na sua música, no seu humor, na sua inocência.
E numa espécie de arca onde o tempo não entrou e cabia o Campo Grande, a “mejunga”, espécie de sebuteo que ele inventou, “A minha velha casa”, a madame Amzel, a “Filosofia de merda” do seu avô Achilles, está a génese destas frases que agora se apresentam. Frases loucas filhas de um tempo que essa arca guardou. E que sugerem situações impossíveis, irrisórias, surreais. E que o António resolveu mais tarde ilustrar. É um mundo que até hoje está vivo na sua imaginação e alimenta boa parte do muito que ele cria.
É um mundo que só há dentro de nós. Tal como os filmes de Charlot. Mas que lá está, em muitos de nós, assim mesmo, basta que não o asfixiemos. Basta que sintamos que a memória é a nossa mãe.
Uma memória antiga. Mãe. E é por isso que é tão profunda esta obra, porque remonta a um tempo que perdemos e ficou sabe-se lá onde. E nos assusta saber que se viveu quase assim. E pergunto: serão as frases e as figuras deste Storyboard um pesadelo de que se acorda a rir ou a chorar?
Maria do Céu Guerra