O ‘Trio com piano’ (op. 64), encomenda da Fundação Gulbenkian, foi terminado em Agosto de 1985, tendo tido estreia a 20 de Maio de 1986, pelo Mirecourt Trio (EUA) – dedicatários da obra –, no Grande Auditório da referida instituição. Obra tonalmente livre, os seus três andamentos revertem a sequência tradicional (rápido- lento-rápido) para adoptarem a de Largo/Allegro/Lento, ou seja, lembrando uma ‘sonata da chiesa’ barroca “amputada” do andamento rápido terminal.
O 1.º andamento, relativamente breve, apresenta-se numa forma provida de um pórtico inicial, com cordas em harmónicos (à distância de 5P, e depois em uníssono de 8va.) sobre uma melodia pentatónica do piano. Segue-se a secção central (B), na qual violino e violoncelo desenovelam cantilenas de larga respiração, sempre sustentados pelo piano, ao qual caberão dois “cortes” com função estrutural. O material melódico inicial regressa nas cordas (uníssono) no “pórtico” final, fechado com novo ‘corte’ no piano, ecoado pelas cordas até se consumar num uníssono de lá em ‘pp’.
O ‘Allegro’ é um dos grandes momentos da música de câmara do autor. Quase podíamos chamá-lo de ‘Allegro barbaro’, tal o carácter indomável e ímpeto inexorável deste ‘moto perpetuo’! Ele está predominantemente no compasso 4/4, c De forma rapsódica (com recorrências), ele apresenta praticamente todo o material motívico (fundamentalmente células rítmicas) nos 30 primeiros compassos, após o que o trata livremente, ora variando texturas (incluindo tipos de articulação), ora introduzindo novos tipos de acompanhamento, ora por alteração métrica, ora ainda renovando o substrato harmónico, ou modificando o carácter. A forma obedece de novo à ‘sectio aurea’, com o ponto culminante a cair no momento que antecede a secção polimétrica (compassos diferentes nas cordas e no piano).
O ‘Lento’ conclusivo é mais longo que os dois outros andamentos juntos. Apresenta-nos primeiro uma paisagem rarefeita (sons harmónicos nas cordas) – dir-se-ia a planície alentejana numa tarde de Estio! Dela se eleva uma litania atonal das cordas, triste e (in)tensa. Uma secção intermédia mais dialogante precede o regresso da atmosfera inicial (com o material modificado) e da litania, daí evoluindo até adquirir uma feição com reminiscências diatónicas, sobre um ‘ostinato’ de sol# em 8vas. melódicas no piano. Uma Coda intermédia (‘Meno mosso’) precede uma “preparação” da Coda real, tendo a função de reinstalar a rarefacção anímica do início. A Coda (‘Più lento’) é sinalizada pela reintrodução de sons harmónicos nas cordas, até que tudo se esfuma em silêncio.
Bernardo Mariano