Orquestra e Narrador 1976
(Speaker, Picc, 2Fl, 2 Ob, 2 Cl Sib, 2 Bsn, C Bsn,T Sax, 4 Hn F, 2 Trp C, 2 Tbn, Tb, Timp, Xyl, T B, 4 Perc, Sistro, Cel, Hp, 2 Pno, Strings)
Duração: 50'
A Fábrica dos Sons é, nitidamente, um exemplo de música programática. A partitura sinfónica descreve e comenta as alternativas de um texto que o ouvinte vai conhecendo com antecedência.
A estética oscila entre o ambiente nostálgico-circence dos filmes de Charlot e o caos controlado que caracteriza certa música pioneira da contemporaneidade, com sobreposição de temas em diferentes tonalidades, um pouco à maneira das primeiras experiências de Charles Ives em princípios do século XX.
A Fábrica dos Sons sobrevoa a atmosfera própria dos acompanhamentos ao vivo nos espectáculos de cinema mudo e da música original dos começos do cinema sonoro. Mesmo quando o nível de complexidade alcançado afasta a obra das raízes estilísticas que a inspiraram, subsiste um aroma indefinivelmente anglo-americano dos anos 20, próprio do drama chaplinesco-industrial (por assim dizer) que o hilariante texto relata.
Vigora nesta partitura uma perfeita utilização dos recursos tímbricos e um indeclinável respeito pela \"fisiologia\" de cada sector instrumental (mais uma vez, obrigado, Fernando Lopes-Graça, pela penetrante expressão que instala a lógica da Biologia no âmbito da Música...). As intervenções solísticas estão invariavelmente na tessitura certa e permitem a cada instrumento respirar à vontade e expressar-se no seu próprio idioma musical. As passagens virtuosísticas podem ser eventualmente difíceis mas jamais são impossíveis. A escrita não pede maçãs ao limoeiro e vai buscar os efeitos onde eles melhor resultam.
A arte da orquestração, por alguns considerada uma ciência, exige um profundo saber oficinal, um profissionalismo sem fissuras. Se a isto acrescentarmos nobreza na condução melódica, inteligência nas harmonizações, rigor nos procedimentos contrapontísticos e equilíbrio no sentido da forma, estaremos perante o perfil inconfundível de um compositor sinfónico a sério.
António Victorino D'Almeida consegue manter o seu itinerário criador, distanciando-se tanto do radicalismo experimentalista como da tentação das soluções fáceis. Está implícito nestas obras o enigmático provérbio
in extremis, medium, acunhado com subtil humorismo pelo ilustre argentino Oliverio Girondo.
António Victorino D'Almeida está de regresso de todos os \"ismos\". Dono e senhor de uma experiência musical de cinco décadas, não se demite da sua liberdade criadora, assumida com coragem na juventude e tenazmente cultivada ao longo de uma carreira onde tudo o que fez e faz foi e será honesto, polémico, discutível e, por isso mesmo, fascinante. Há, no entanto, dois aspectos que não admitem discussão: a solidez da sua formação técnica, inerente aos grandes professores que orientaram os seus estudos, e a sua fecundidade artística, materializada num catálogo de mais de 180 composições.
Para além da sua acção multidisciplinar como pianista, escritor, historiador, realizador de televisão, chefe de orquestra, etc., António Victorino D'Almeida é, acima de tudo, um compositor maduro em plena floração, um marco referencial na hora de avaliar quem é quem na evolução da modernidade musical portuguesa.
Alejandro Erlich Oliva
Lisboa, Maio de 2004