“Absurdo.
Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino.
Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas ações com teorias que as condenam. Talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos, nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo.
Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.”
Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego
A peça foi baseada neste último parágrafo. Não é uma obra descritiva, mas sim uma representação da dualidade de ações presentes no excerto do texto, através de diferentes tipos de linguagem musical. Por um lado, é usada uma linguagem tradicional– uma tessitura média do corne inglês, com um fraseado melódico de acordo com uma escrita convencional – e por outro, uma linguagem mais ousada, com algumas técnicas modernas – quartos de tom, registo extremamente agudo do instrumento, multifónicos, entre outros. Ao longo da obra há um afastamento gradual das duas linguagens usadas, em que uma evolui progressivamente, e a outra regride, chegando por vezes a ser “banalizada”.