revisão crítica e redução para piano [2005]:
Luís Carvalho
“Premier Concerto pour la Clarinette avec Orchestre ou Quatuor seulement”
Duração aproximada: 26 min. [13+5+8]
Orquestra: 1 fl./2 ob./1 fag./2 trpa./1 trbn./cordas
PREFÁCIO
O primeiro concerto de Canongia é sem dúvida, dos quatro que escreveu, o mais reminiscente de Carl Maria von Weber. Weber escreveu em 1811 três das mais famosas obras solísticas com orquestra do repertório do clarinete: o Concertino op.26 e os dois Concertos opp.73 e 74. Canongia, quando se propôs na década de 1820 a escrever também ele uma obra concertística para o seu instrumento, inspirou-se quase certamente naquelas obras weberianas, como se pode verificar, por exemplo, pela escolha da tonalidade em modo menor (sol menor no caso do “Primeiro Concerto” do português, por comparação com fá menor do “Concerto nº1 op.73” do alemão), ou ainda pela opção por escrever um rondo alla pollaca como terceiro e último andamento (idêntico precisamente ao também último andamento do “Concerto nº2 op.74” de Weber). É talvez por influência deste grande compositor alemão, que foi mesmo um dos grandes precursores do romantismo germânico, que o “Premier Concerto” de José Avelino Canongia é o mais tradicional dos quatro que haveria de compor, quer na sua estrutura exterior (em três andamentos perfeitamente delimitados, ao contrário de todos os outros), quer mesmo na sua organização interna. Assim temos um Allegro maestoso inicial na habitual forma allegro-sonata, aliás com uma extensa secção de desenvolvimento (entre c.174 com anacruse do solista, até c.256 igualmente com anacruse do clarinete, portanto com uma duração perto da centena de compassos – esta será aliás a mais longa de todas as secções de desenvolvimento em todos os concertos canongianos), seguindo as exposição e reexposição seguintes os cânones usuais desta forma. Aliás, apesar de seguir escrupulosamente o bitematismo característico da forma sonata, nomeadamente com uma primeira secção temática no tom principal (sol menor) e a seguinte no seu relativo (Sib Maior), o tema enunciado logo de início pela orquestra não será jamais retomado pelo solo, estando ao clarinete reservado material temático diverso, ainda que vagamente derivado do da orquestra (início do primeiro tema do clarinete com impulso em anacruse [cc.68/69], tal como no tema inicial da orquestra [c.1][1]). A introdução orquestral, apesar destas pequenas diferenças com a parte solista, enuncia desde logo claramente dois grupos temáticos, e nos dois pólos tonais fundamentais do andamento (sol menor/Sib Maior). O desenvolvimento propriamente dito é algo ambíguo, pois ainda que efectivamente desenvolva material temático previamente apresentado (como por exemplo entre cc.209 e 224, em que varia o segundo tema, com os seus ritmos pontuados), também apresenta material completamente diferente, como na secção entre cc.186 e 192, em que se inicia a apresentação de um novo tema (baseado num ritmo de tercinas), mas que todavia não será plenamente concluído, truncando-se o seu final para prosseguir numa nova sub-secção de desenvolvimento.
Tal como era usual no período clássico, a cadenza para o solista não aparece aqui escrita pelo autor, ao contrário do que acontecerá, por exemplo, em vários momentos dos concertos seguintes. Neste “Concerto nº1” Canongia apenas deixa um ponto cadencial para improvisação pelo solista, que todavia acontece já mesmo no final do andamento, incluído na secção de coda (cc. 342-343.
O Adagio central não apresenta dois momentos temáticos claramente distintos como seria talvez de esperar, enunciando antes pequenas e constantes variações motívicas derivadas da melodia inicial, que vão evoluindo entre o tom principal (Mib Maior) e o tom da dominante (Sib Maior), antes de uma breve secção central de desenvolvimento com função essencialmente de ponte para a reexposição temática. Esta é, pois, uma límpida forma ternária ABA monotemática.
Já o andamento final é um rondó, indicado aliás pelo seu epíteto (Rondo: Tempo di polacca), e lembra, nalguns momentos, a escrita de Paganini no seu “Concerto em Mi menor” para violino (também conhecido com o nº6, de 1815), nomeadamente na opção por apresentar o refrão, numa das suas reprises finais, no modo maior, quase uma alusão “picarda” (o tom principal é aqui mais uma vez sol menor). Apresentando grandes semelhanças à forma compósita rondó-sonata, não deixa de ser este um andamento algo irregular em termos formais, ao mesclar secção de desenvolvimento (correspondente à copla C) com a reexposição do material temático secundário (secção B, correspondente à copla opositora ao refrão [A, material temático principal]). A forma rondó-sonata tradicional segue uma estrutura esquemática clara (ABACABA), em que as secções A (refrão) e B (copla) são perfeitamente delimitadas, ao passo que C corresponde a uma nova copla opositora ao refrão, mas que na realidade é antes um desenvolvimento de motivos de A e B. Este último andamento do “Primeiro Concerto”, por seu lado, antecipa a reexposição de B apresentando-a precisamente antes do desenvolvimento [C], ainda que não enunciando imediatamente todos os seus elementos temáticos (cc.125-137). Então intersecta-lhe uma secção de desenvolvimento (correspondente a C, cc.138-162, que inclui a citação do refrão [A] alterada para o modo maior [cc.148 com anacruse a 162]) para logo de seguida concluir a recapitulação dos restantes elementos de B (cc.163-214).
Este “Concerto nº1” de José Avelino é sem dúvida de influência mais alemã que italiana, como verificaremos será o caso dos concertos posteriores. Mormente a nível melódico não existe ainda aquela excessiva preocupação com o cantabile que caracterizará principalmente os concertos intermédios, verificando-se aqui até alguma rigidez nos contornos das frases, nomeadamente no primeiro andamento (Allegro maestoso). Porém essa austeridade mais tipicamente germânica redundou porventura no concerto de Canongia mais equilibrado, sendo também uma obra muito mais próxima da estética clássica e das suas simetrias organizacionais.
[1] Curiosamente este tema está mesmo estritamente reservado à orquestra, uma vez que reaparecerá outra vez apenas no final da exposição (c.148 e ss.), com funções de codetta, precisamente na altura em que o solista terminou já a apresentação de todo o seu material temático e retornará apenas para a secção de desenvolvimento.