Prefácio
O pianista português José Vianna da Motta dedicou-se à composição durante cerca de trinta e cinco anos. Entre 1885 e 1890, período durante o qual residiu na Alemanha, interessou-se em particular pelo repertório de música de câmara, de coro e de orquestra, tendo composto, entre outras obras, a Abertura Dona Inês de Castro para orquestra, vários Lieder (Drei Lieder, op. 3; Fünf Lieder, op. 5; Vier Gedichte, op. 8), obras para piano a quatro mãos (Erinnerungen, op. 7; Ein Dorffest, op. 11), o Quarteto em Mi bemol maior e o Trio em Si menor. Foi também neste período que compôs as suas duas únicas obras para piano e orquestra: o Concerto para Piano e Orquestra em lá maior, composto entre os dias 23 de maio de 1886 e 14 de agosto de 1887 conforme indicado na capa do seu manuscrito e a Fantasia Dramática, composta entre os dias 25 de janeiro e 30 de setembro de 1890 segundo os seus diários[1]. Estas obras foram gravadas pela primeira vez em 1999 pelo pianista português Artur Pizarro (discípulo de José Carlos Sequeira Costa, que por sua vez foi discípulo de José Vianna da Motta) e pela Orquestra Gulbenkian sob a direcção do maestro britânico Martyn Brabbins para a editora discográfica Hyperion Records.
A leitura das suas cartas e dos seus diários revela que a originalidade do seu Concerto para Piano e Orquestra em lá maior foi uma das preocupações de Vianna da Motta, provavelmente motivado pelas declarações do seu professor de piano Carl Schaeffer, dedicatário da obra, segundo o qual se tratava de um concerto “muito bonito e original” e segundo o qual “ainda não [tinha] aparec[ido] coisa assim”[2]. Numa carta datada de 26 de maio de 1887, escrita em Frankfurt am Main durante o curso de interpretação de Hans von Bülow e dirigida a Margarethe Lemke, Vianna da Motta afirma não ter sido afinal o primeiro a compor um andamento de um concerto em forma de variações. Ele acabava de conhecer, na loja da editora musical Steyl & Thomas, o segundo andamento do Concerto para Piano e Orquestra em mi bemol maior, op. 36 de Felix Draeseke[3] composto cerca de um ano antes. Para além disso, na entrada do dia 26 de setembro de 1888 do seu diário, Vianna da Motta revela espanto ao encontrar na Abertura de König Stephan, op. 117 de Beethoven um tema semelhante ao segundo tema do primeiro andamento do seu concerto (c. 82+, 89+, etc.). Vianna da Motta refere-se ao tema anunciado nas flautas e nos clarinetes nos compassos 117 a 124:

Ainda na entrada desse dia, Vianna da Motta chama a atenção para uma outra semelhança, entre o segundo tema do primeiro andamento do seu concerto e a secção Allegro ma non tanto do quarto andamento da Sinfonia n.° 9 em ré menor, op. 125 de Beethoven[4]. Na verdade, essa semelhança tem a ver com um motivo que apenas se ouve por duas vezes no início dessa secção, primeiro nos violinos e violas de arco, depois nos violinos, violas de arco, flautas, oboés, clarinetes, fagotes, violoncelos e contrabaixos:
(primeira aparição do motivo)

Contrariamente a Carl Schaeffer, Hans von Bülow parece não ter apreciado o concerto de Vianna da Motta. A 30 de janeiro 1890, depois de Vianna da Motta ter dado a conhecê-lo a Bülow este ter-lhe-á dito: “Tem o sabor de uma casa de doidos”[5]. No dia seguinte, Vianna da Motta escreveu no seu diário uma passagem onde revela o seu estado de alma consequente do seu encontro com Bülow e justifica o uso de dissonâncias:
“Ontem, o meu concerto pareceu-me tão asqueroso que tive vontade de o queimar. Hoje, tive coragem de o ver com exactidão e tive de constatar que o Bülow foi demasiado violento. Tem durezas, tem condução de vozes dissonante, mas, ou elas são fáceis de serem modificadas ou elas são sancionadas por grandes espíritos (por exemplo, nas Harmonies du soir de Liszt encontra-se a horrorosa nota sustentada ré juntamente com lá bemol maior) ou elas serão atenuadas através da diversidade da orquestra e da sonoridade do piano. Portanto, ainda não é para ser deitado ao fogo! Não pode ser tão mau como na opinião do Bülow que, através de Brahms, se tornou tão sensível contra as dissonâncias”[6].
É de notar a referência que Vianna da Motta faz a uma dissonância “horrorosa” no Estudo de execução transcendente, S. 139 n.º 11: “Harmonies du soir” de Franz Liszt. Não se percebe se é feita menção a uma “nota sustentada ré juntamente com lá bemol maior” nesse estudo ou no seu próprio concerto uma vez que esta configuração stricto sensu não existe na obra de Liszt. Ela encontra-se, isso sim, transposta uma quarta aumentada no segundo tempo do compasso 8: nota sustentada lá♭ juntamente com o acorde de mi duplo bemol maior (que corresponde ao acorde enarmónico de ré maior). É possível que Vianna da Motta se estivesse a referir a uma passagem do seu próprio concerto já que no compasso 147 do primeiro andamento encontra-se uma “nota sustentada ré juntamente com lá bemol maior”. Ele justificaria assim a sua dissonância “horrorosa” comparando-a com a de um “grande espírito”.
No ano de 2016, fiz para a AvA Musical Editions uma redução para piano da parte de orquestra do Concerto para Piano e Orquestra em lá maior de José Vianna da Motta com o intuito de facilitar os ensaios entre pianistas solistas e pianistas acompanhadores.
João Costa Ferreira
[1] José Vianna da Motta, Diários (1883-1893), coord. de Christine Wassermann Beirão, trad. de Elvira Archer e transc. de José Manuel Beirão, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal: Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2015, p. 694, 742.
[2] Idem, p. 346.
[3] Idem, p. 409.
[4] Idem, p. 562.
[5] Idem, p. 696.
[6] Idem, p. 697.