Composta por José Vianna da Motta aos onze anos de idade, Les Inondations de Murcie, Scène caractéristique op. 28 pertence ao conjunto de obras de infância escritas entre 1873 e 1883. Embora na capa do manuscrito esteja escrito “Les Inondations de Murcie en 1879” (“As Inundações de Múrcia em 1879”) – título que indica o ano da catástrofe que inspirou o compositor a escrever a obra –, optou-se pelo título apresentado no cabeçalho da primeira página da partitura manuscrita.
A 15 de Outubro de 1879, violentas e repentinas precipitações inundaram a bacia do rio Segura. A altura da água atingiu o seu máximo histórico (cerca de quatro metros em algumas ruas da cidade de Orihuela) provocando milhares de mortes e devastando a região de Múrcia. Devido à sua dimensão singular, a catástrofe ficou conhecida pelo nome de Riada de Santa Teresa. Em solidariedade para com as vítimas da catástrofe, várias instituições e personalidades organizaram recolhas de fundos. As imprensas espanhola e internacional uniram-se a esses esforços e daí talvez se explique a referência de Vianna da Motta ao jornalista francês Édouard Lebey na primeira página do seu manuscrito: “– Édouard Lebey – (ao comité da festa parisiense)”. É possível que Vianna da Motta tenha composto esta obra em homenagem às vítimas, tendo em perspectiva a sua publicação no número único do Paris-Murcie, Journal publié au profit des victimes des inondations d'Espagne (Paris-Múrcia, Jornal publicado em benefício das vítimas das inundações de Espanha) realizado em Dezembro de 1879 pelo Comité de la presse française sob a direção de Édouard Lebey. O contexto desta publicação explica também o facto de o compositor ter dado à sua obra um título em francês e ter escrito nessa mesma língua as indicações relativas às cenas da catástrofe por ele imaginadas: Avant l'orage (Antes da tempestade); Le temps commence à se troubler (O tempo começa a agitar-se); L'orage (A tempestade); Le désespoir (O desespero); Des renversements (intraduzível); La Prière (A Oração); Hymne triomphale en action de grâce (Hino triunfal em ação de graças).
Les Inondations de Murcie, Scène caractéristique op. 28 é muito provavelmente a obra de infância de Vianna da Motta mais elaborada, nos planos composicional, musical e pianístico. Reveladora de um domínio precoce da harmonia e do contraponto, a sua escrita pianística quebra por vezes as correntes das regras académicas na procura de efeitos dramáticos evocadores de fenómenos da natureza. Para além disso, ela permite conforto digital, o que demonstra que, naquela época, a composição ao piano era em Vianna da Motta uma prática corrente e que o processo pelo qual as regras de composição eram aplicadas não era tanto intelectual, mas sobretudo práxico.
Tal como se pode comprovar pela análise do esquema estrutural em baixo, esta peça é construída através da sucessão de momentos contrastantes, consequência lógica da descrição musical de uma cena dramática.
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Intro.
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ponte
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Concl.
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LÁ
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dó
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ré
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RÉ
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ré
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RÉ
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SOL
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RÉ
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Contudo, na introdução, Vianna da Motta utiliza um procedimento wagneriano que visa fazer desta passagem musical um presságio, apresentando elementos musicais dramáticos que serão utilizados ao longo da obra. A relação entre os graus harmónicos I e vi presente nos encadeamentos dos acordes de lá maior e de fá sustenido menor dos compassos 1 a 3 aparece transposta em ré menor no tema A Oração (c. 113+), enquanto que a escrita em tremolos aparece nas várias secções onde o compositor evoca a agitação atmosférica. Ainda o motivo mi–mi?–fá–sol–lá dos compassos 7 a 9 está presente nas vozes intermédias dos compassos 15 a 17 e dos compassos 34 a 36.
Num estilo chopiniano, o Andantino pastoral dos compassos 9 a 29 (Antes da tempestade) instala uma atmosfera calma. A sua melodia simples, acompanhada essencialmente de acordes de dominante e tónica sobre a nota pedal lá, atinge a sua maior luminosidade no compasso 21 com a modulação ao tom de dó sustenido maior. Este tema reaparece em lá maior no compasso 29 (O tempo começa a agitar-se) com um acompanhamento ondulante na mão esquerda e uma voz intermédia em tremolos na mão direita dando os primeiros sinais premonitórios da tempestade.
A passagem lisztiana dos compassos 43 a 62 (A tempestade), com um tema melódico inspirado num motivo do tema precedente, decomposto em tremolos na mão direita sobre escalas cromáticas ascendentes e descendentes nos registos graves do piano, acompanhadas de crescendi e de diminuendi, cria uma atmosfera musical cheia de turbulência numa confusão organizada.
Ainda sob a influência de Liszt, e após um longo silêncio dramático no compasso 62, uma ponte de seis compassos, caracterizada pela sucessão de momentos de perturbação e de silêncio, introduz aquela que é