Autos das Barcas de Gil Vicente
(notas gerais)
Nas condições em que a proposta de criação da obra surgiu, pesou muito a vontade de fazer dela também um exercício de economia de meios. Dessa forma tudo se desenhou – tanto em termos musicais, como cénicos – para que apenas dois actores e cinco músicos se encarregassem de criar toda a complexa teia de mais de vinte personagens em todos os três autos, desdobrando-se nos mais diversos e contrastantes registos. Tal desao levou a que se procurasse soluções musicais e cénicas capazes de tornarem viável esse propósito.
Cada instrumentista participa também, de forma enfática, na composição de diversos personagens. Isso é particularmente evidente no Auto da Barca do Purgatório, no qual todas as cenas são introduzidas por um solo instrumental absoluto, tentativa de incarnação sonora de uma personagem e espécie de seu duplo em toda a cena. Existem também muitas outras situações em que o desempenho dos instrumentistas se combina com os actores. E todos cantam ou podem cantar.
Há diversos aspectos em que o trabalho sobre esta obra permite mudanças e ampliações, nomeadamente no que respeita ao número e tipo de vozes utilizadas (actores, solistas ou coro). O que se diz das vozes faladas ou cantadas, pode aplicar-se também relativamente à percussão.
Muitas vezes as partituras não indicam expressamente quais os instrumentos de percussão a utilizar, de que tipo e em que número, pretendendo deixar a sua definição ao critério de cada produção, de acordo com os recursos existentes. Assim, o número e tipo de instrumentos de percussão pode ser relativamente modificado, nomeadamente em muitas situações em que a percussão sublinha ou pode sublinhar algum elemento do texto e da acção. Desta forma há lugar para comentários ou intervenções da percussão, para além daqueles que estão previstos na partitura. O mesmo se diga do número de executantes.
A perspectiva original da obra também inclui a possibilidade de qualquer dos autos se preparar e apresentar com um número maior de actores ou de músicos. Isso poderá permitir que mais pessoas se envolvam na interpretação. Numa perspectiva pedagógica – e uma vez que os Autos das Barcas são obras com presença nos programas de estudo da língua portuguesa – também será possivel apresentar apenas algumas selecções de cenas, de acordo com os recursos e contextos de cada produção.
Fernando C. Lapa
Sobre o Auto da Barca do Inferno:
(Versão estreada em 27 de Abril de 2018 nos Dias da Música, na Sala Almeida Negreiros do Centro Cultural de Belém)
O Auto da Barca do Inferno é o primeiro espectáculo deste tríptico composto pelo Auto da Barca do Purgatório e pelo Auto da Barca da Glória. Terá sido apresentado pela primeira vez na corte, em 1571, sendo, talvez, a obra de Gil Vicente mais presente na nossa memória colectiva. Aqui terá lugar uma versão adaptada, em que texto e música se fundem no mais harmonioso canal de expressividade. Mais do que procurar a actualidade da obra, uma vez que é inevitável que esta actue em nós e no nosso tempo - não estivéssemos nós a falar de pecados e moralidade nas classes - queremos descobrir uma outra forma de a comunicar.
Inferno mostra o destino das almas num lugar de condenação ou de glória e apresenta uma grande quantidade e diversidade de personagens, sugerindo uma construção mais policromática e contrastada, a partir dos diferentes tipos que articula. E apesar de o viver de cada personagem ser simbolizado pelo(s) objecto(s) que traz consigo, nesta proposta iremos levar isso ao limite, tornando os adereços nas próprias personagens e permitindo aos intérpretes poderem ser agentes de voz ou musicalidade que dá vida aos diferentes arquétipos.
Auto da Barca do Inferno é um espectáculo de um só fôlego, onde somos constantemente surpreendidos com a entrada de novas personagens, com argumentações, súplicas, acusações e condenações. É de um ritmo fervilhante e divertido, mas ao mesmo tempo acutilante e mordaz, como não podia deixar de ser.
Sara Barros Leitão / Fernando C. Lapa
Outra proposta de leitura dos Autos das Barcas de Gil Vicente
(algumas notas breves)
Peças eminentemente teatrais na genial concepção de Gil Vicente, estes Autos das Barcas foram desta vez pensados numa perspectiva artística um pouco mais larga, algo híbrida, que em diversos aspectos nos remete também para um mundo próximo da ópera. Com um texto maioritariamente falado e representado, estaríamos no território do teatro. No entanto um dos aspectos mais relevantes desta proposta consiste em que a música tem aqui uma presença praticamente constante, implicada a diversos níveis no sentido geral da obra e na narrativa de cada auto. A música não pretende ser apenas um elemento decorativo, qual pano de fundo ou cenário; ela assume-se sobretudo como um elemento da narrativa, implicado na caracterização de cenas e personagens, antecipando, propondo, reforçando, comentando.
Nas condições em que a proposta de criação da obra surgiu, pesou muito a vontade de fazer dela também um exercício de economia de meios. Dessa forma tudo se desenhou – tanto em termos musicais, como cénicos – para que apenas dois actores e cinco músicos se encarregassem de criar toda a complexa teia de mais de vinte personagens, desdobrando-se nos mais diversos e contrastantes registos. Tal desafio levou a que se procurasse soluções musicais e cénicas capazes de tornar viável esse propósito.
Cada instrumentista participa também, de forma enfática, na composição de diversos personagens. Isso é particularmente evidente no Auto da Barca do Purgatório, no qual todas as cenas são introduzidas por um solo instrumental absoluto, tentativa de incarnação sonora de uma personagem e espécie de seu duplo em toda a cena. Existem também muitas outras situações em que o desempenho dos instrumentistas se combina com os actores. E todos cantam ou podem cantar.
Há diversos aspectos em que o trabalho sobre esta obra permite mudanças e ampliações, nomeadamente no que respeita ao número e tipo de vozes utilizadas (solistas ou coro). O que se diz das vozes cantadas, pode aplicar-se também relativamente à percussão. O número e tipo de instrumentos de percussão pode ser relativamente modificado, nomeadamente em muitas situações em que a percussão sublinha ou pode sublinhar algum elemento do texto e da acção. Desta forma há lugar para comentários ou intervenções da percussão, para além daqueles que estão previstos na partitura. O mesmo se diga do número de executantes.
A perspectiva original da obra também inclui a possibilidade de qualquer dos autos se preparar e apresentar com um número maior de actores ou de músicos. Isso poderá permitir que mais pessoas se envolvam na interpretação. Numa perspectiva pedagógica – e uma vez que os Autos das Barcas são obras com presença nos programas de estudo da língua portuguesa – também será possivel apresentar apenas algumas selecções de cenas, de acordo com os recursos e contextos de cada produção.
Fernando C. Lapa